A Anta-Pretinha É ou Não É Uma Espécie Nova?

Descrita como uma nova espécie de anta amazônica em dezembro de 2013, a anta-pretinha ainda é objeto de discussão entre os especialistas em mamíferos. Alguns afirmam que ela não existe como espécie independente e que seria apenas uma variedade da espécie já conhecida de anta sul-americana

Celebrada por muitos como a maior descoberta da zoologia deste século, a descrição de uma nova espécie de anta da Amazônia, a anta-pretinha, em dezembro de 2013, está gerando muitas controvérsias. O trabalho, publicado na revista Journal of Mammalogy, foi fruto de 10 anos de esforços de uma equipe liderada por Mario Cozzuol, paleontólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No Simpósio Internacional de Antas da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN/SSC Tapir Specialist Group, na sigla inglesa), evento que aconteceu entre 16 e 20 de novembro deste ano, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, Cozzuol e seus colaboradores divulgaram novos dados sobre a ecologia e a genética da anta-pretinha, espécie que descreveram e batizaram com o nome científico de Tapirus kabomani. Ao contrário da espécie mais conhecida de anta sul-americana, a Tapirus terrestris, cujas populações escolhem entre viver no interior da mata fechada e em campos abertos, a T. kabomani prefere regiões de paisagem mais variada, onde há um mosaico de áreas abertas e fechadas. “Todos os lugares em que encontramos a espécie são assim”, diz Cozzuol. “Pode ser uma coincidência, mas talvez a T. kabomani tenha mesmo um comportamento diferente da T. terrestris.”
Porém, nem todos os especialistas em mamíferos estão convencidos de que a anta-pretinha existe como espécie independente. Alguns pesquisadores acreditam que elas seriam apenas exemplares da espécie T. terrestris um pouco mais baixas e escuras que a média.
Um grupo de pesquisadores liderado por Robert Voss, zoólogo do Museu de História Natural Americana (AMNH), refez parte das análises da equipe de Cozzuol e defende que a espécie não existe. “Teriam várias gerações de mastozoólogos neotropicais realmente falhado em reconhecer uma espécie amplamente distribuída pela Amazônia?”, perguntam Voss e coautores em um artigo publicado na edição de agosto do Journal of Mammalogy. “Sim, não reconheceram, lamento”, responde Cozzuol, que rebateu as críticas na mesma edição da revista. “Isso já aconteceu antes e vai acontecer de novo, não é pecado.”
Para verificar a existência da nova espécie, os pesquisadores compararam medidas dos crânios de antas-pretinhas com as de crânios de outras quatro espécies vivas e alguns fósseis de antas (foto). Compararam também as sequências de três genes do DNA mitocondrial de quatro pretinhas com os mesmos genes de dezenas de antas de todas as espécies, obtidas no banco de dados aberto GenBank. “A maioria dos estudos com antas usa apenas um gene mitocondrial”, explica Cozzuol. Seja pela forma de seu crânio ou pelo seu DNA, a pretinha despontava como um animal diferente das outras espécies.
Segundo o site da Revista Pesquisa Fapesp, fonte desta postagem, não é preciso ser um caçador amazônico para distinguir a olho a T. kabomani da T. terrestris. A pretinha é bem menor, mais baixa e com pernas mais curtas que a T. terrestris. Sua pele é mais escura, a crina mais baixa e a testa mais larga. Os machos de todas as espécies de antas tendem a ser um pouco menores que as fêmeas e essa diferença de tamanho entre os sexos é mais acentuada entre as pretinhas. Outra diferença entre os sexos é uma mancha branca na cabeça, que se estende da bochecha até o pescoço, uma exclusividade das fêmeas. “Alguns indivíduos de T. terrestris têm manchas nas bochechas, mas elas não são tão nítidas e podem aparecer em ambos os sexos”, explica Cozzuol. 
Nada convencidos com os indícios de uma nova espécie, Voss e seus colegas contestam todas essas conclusões. Eles reexaminaram os mesmos dados genéticos usando um método estatístico alternativo e concluíram que as diferenças entre as sequências de DNA são pequenas demais para considerar a pretinha como uma espécie separada.
“Continuo convencido de que não é uma espécie válida”, diz Voss. “A evidência genética é nula.” Ele acredita que a hipótese deveria ser testada usando também o DNA do núcleo das células, além daquele das mitocôndrias já analisado. Cozzuol e Santos estão analisando justamente isso no momento, mas já concluíram que não é possível distinguir nenhuma espécie de anta sul-americana pelos genes de DNA de núcleo normalmente usados como marcadores nesse tipo de estudo, o que significa que precisarão buscar por diferenças em sequências de DNA nuclear menos conhecidas. “Os argumentos dele não se sustentam e vão além das exigências razoáveis”, diz Cozzuol. “Não tenho dúvida de que poderíamos ter feito melhor, mas outras espécies já foram descritas recentemente com muito menos detalhes e informações.”
“A evidência etnográfica também não me convence”, afirma Voss. “Indígenas amazônicos rotineiramente superdiferenciam os animais grandes que caçam.” Para defender esse ponto, Cozzuol teve ajuda do etnozoólogo Hugo Fernandes-Ferreira, que deve concluir neste ano uma tese de doutorado na Universidade Federal da Paraíba sobre a história da caça a animais silvestres no Brasil. Fernandes-Ferreira explica que a superdiferenciação a que Voss se refere é a tendência de povos indígenas a darem nomes diferentes para animais que identificam com aparência diferente, mas que na verdade são apenas variações dentro de uma mesma espécie.
Fernandes-Ferreira também encontrou registros históricos de caçadores e naturalistas mencionando duas espécies de antas no Brasil. O mais antigo é de 1794, no qual naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira relata à coroa portuguesa a existência de duas espécies de anta na província do Grão-Pará, onde atualmente fica o estado do Amazonas.
Outro relato histórico importante é o do presidente norte-americano Theodore Roosevelt, que menciona em suas memórias da visita ao Brasil em 1912 ter caçado no Mato Grosso uma anta, “um macho muito menor do que o outro que matei” e que “os caçadores disseram ser de um tipo diferente”.
As antas abatidas por Roosevelt foram doadas ao AMNH e analisadas pelo zoólogo Joel Allen, em 1914, que considerou o animal menor apenas como uma variação da T. terrestris. “Tivemos acesso às medidas desse exemplar e elas batem perfeitamente com o que esperamos da T. kabomani”, diz Cozzuol.

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