Conhecendo Melhor as Superbactérias

Os microorganismos continuam acumulando alterações genéticas (mutações) que garantem sua evolução como patógenos de sucesso e, em alguns casos, se tornam resistentes a todas as drogas

O termo ‘superbactérias’ é atribuído às bactérias que desenvolvem resistência a, praticamente, todos os antibióticos. Vários fatores estão envolvidos na disseminação desses microoorganismos multirresistentes, incluindo o uso abusivo de antibióticos, procedimentos invasivos (cirurgias, implantação de próteses médicas e outros) e a capacidade das bactérias de transmitir seu material genético. É preocupante o aumento contínuo das taxas de mortalidade relacionadas a infecções por bactérias multirresistentes, em todos os continentes. A partir de dados (de 2009) de um grupo de estudo envolvendo o Centro Europeu para o Controle de Doenças e a Agência Europeia de Medicina, estimou-se que, a cada ano, cerca de 25 mil pacientes morrem dessas infecções na União Europeia. Nos Estados Unidos, estudos realizados pelos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) avaliaram que mais de 63 mil pessoas morrem, a cada ano, de infecções bacterianas associadas a hospitais. Mais inquietante é o fato de que a taxa de infecções graves por bactérias multirresistentes é ainda maior nos países em desenvolvimento, como o Brasil, onde os serviços de assistência à saúde são, muitas vezes, precários.
As superbactérias têm surgido a partir de diversas espécies ou grupos de microrganismos, alguns dos quais podem ser encontrados normalmente em nosso corpo (na pele e nos intestinos, por exemplo). Entre as espécies mais associadas à resistência a antimicrobianos estão Staphylococcus aureus resistente à meticilina (conhecida pela sigla MRSA), Acinetobacter baumannii, Enterococcus faecium, Pseudomonas aeruginosa, Clostridium difficile, Escherichia coli e Klebsiella pneumoniae.
A MRSA está, sem dúvida, entre as superbactérias mais disseminadas no mundo, tanto no ambiente hospitalar quanto fora dos hospitais, envolvendo inclusive indivíduos saudáveis. Em 2007, o CDC publicou relato estimando que o número de infecções por MRSA nos Estados Unidos estaria próximo de 100 mil por ano, com cerca de 19 mil casos fatais. O número de mortes, segundo o editorial que comentava o artigo, é maior que o das mortes atribuídas ao vírus da Aids naquele país, no mesmo ano. 
Essa forma resistente da bactéria S. aureus tem elevada capacidade de disseminação, sendo comum encontrar bactérias da mesma linhagem (muitas vezes, geneticamente idênticas) em hospitais separados por distâncias continentais, gerando verdadeiras pandemias hospitalares. A maioria das infecções que ocorrem em hospitais é causada por um pequeno número de linhagens internacionais epidêmicas de MRSA. No Brasil e em vários países, está amplamente disseminada a linhagem ST239. Além da resistência múltipla a antibióticos, amostras dessa linhagem são capazes de acumular grande quantidade de biofilme – um verdadeiro ‘tapete’ de bactérias que se forma em superfícies, como as de cateteres, próteses e instrumentos médicos. É de particular importância o fato de que bactérias dessa linhagem adquiriram a habilidade de aderir e invadir células das mucosas do trato respiratório humano, apontada por pesquisadores brasileiros em estudo publicado em 2005.
A década de 1990 foi marcada pela emergência de infecções associadas a amostras de MRSA adquiridas na comunidade, ou seja, fora dos hospitais, inclusive afetando indivíduos sadios. Análises dos genomas dessas bactérias refutaram a possibilidade de linhagens hospitalares terem migrado para a comunidade. Além disso, amostras de MRSA de cepas hospitalares continham múltiplos genes de resistência, enquanto as linhagens comunitárias tinham, em geral, apenas o gene mecA, que confere resistência à meticilina. Nos últimos anos, porém, cepas comunitárias de MRSA começaram a adquirir resistência a múltiplas drogas. 
Outras superbactérias em destaque, na atualidade, são as produtoras de uma enzima denominada carbapenemase. Esses microrganismos estão relacionados a surtos de infecções hospitalares em todo o mundo, inclusive no Brasil. O mecanismo de resistência dessas bactérias está diretamente associado à liberação dessa enzima, que pertence ao grupo das betalactamases, que atuam rompendo e inativando o anel betalactâmico, importante componente da estrutura química dos antimicrobianos. A quebra desse anel impede a ação do antibiótico. O surgimento e a disseminação universal desse tipo de resistência (a antibióticos do tipo carbapenemas) representam desafios tanto para a terapêutica médica quanto para o controle das infecções hospitalares.
Bactérias que produzem carbapenemases do grupo A, conhecidas como KPC (sigla de Klebsiella pneumoniae-carbapenemases, por terem sido encontradas inicialmente nessa bactéria), foram descritas nos Estados Unidos desde o começo da década de 2000 e, segundo estudos recentes, têm se disseminado para outros países. A KPC confere resistência a praticamente todos os antibióticos que têm o anel betalactâmico. Antibióticos carbapenemas (como imipenema, meropenema e ertapenema) tornaram-se ineficazes contra infecções causadas por bactérias produtoras dessa enzima. Essas bactérias também são, muitas vezes, resistentes a outros antibióticos não betalactâmicos, o que restringe ainda mais as opções de tratamento. Por isso, essas superbactérias estão associadas associadas a infecções com significativa mortalidade. No Brasil, bactérias com essa enzima foram registradas pela primeira vez em 2005, mas somente em 2010 elas passaram a causar surtos mais graves no país: 246 pacientes foram contaminados, em vários estados (só em Brasília foram 154), e morreram 18 pessoas no Distrito Federal e uma no Paraná, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Uma nova superbactéria, conhecida como NDM-1, emergiu recentemente na Índia e no Paquistão, gerando preocupação. O gene blaNDM-1, adquirido por essa bactéria, determina a produção de uma enzima (uma nova metalo-betalactamase) que confere resistência a quase todos os antibióticos betalactâmicos em uso. O gene foi caracterizado pela primeira vez em 2008, na K. pneumoniae e na E. coli, mas pode ocorrer em outras bactérias, como A. baumanni. Hoje, pacientes infectados com essa bactéria são tratados apenas com antibióticos monobactâmicos, como aztreonam – esses antimicrobianos têm uma estrutura diferente de anel betalactâmico, por terem sido sintetizados completamente em laboratório. No entanto, é comum a superbactéria NDM-1 ter outros genes de resistência, que a tornam imune a diversos tipos de antibióticos (macrolídeos, aminoglicosídeos, rifampicina, sulfametoxazol e até o aztreonam). 
O sucesso das superbactérias parece depender de três fatores principais: a presença de elementos genéticos móveis, permitindo a transmissão de genes de resistência de uma bactéria a outra ; a intensa utilização de antimicrobianos, levando à proliferação desses micro-organismos resistentes; e a rapidez com que as pessoas viajam de um país para outro, disseminando tais bactérias entre indivíduos de regiões geográficas distintas. Sem dúvida, a questão da múltipla resistência aos antibióticos tornou-se uma crise sanitária global.
Países que mantêm controle rigoroso das infecções em seus hospitais, como Dinamarca, Holanda e Finlândia, por exemplo, têm conseguido manter as taxas de infecção por MRSA muito baixas. As estratégias de controle vão muito além do uso de luvas e máscaras e de antissepsia eficiente de mãos e instrumentos médicos. Nesses países, os hospitais realizam culturas periódicas com amostras de pacientes infectados e de não infectados que apresentam risco de contrair a bactéria resistente. Indivíduos contaminados permanecem isolados, em enfermarias separadas, até que a superbactéria seja eliminada de seu organismo.
Os microorganismos continuam acumulando alterações genéticas (mutações) que garantem sua evolução como patógenos de sucesso e, em alguns casos, se tornam resistentes a todas as drogas, mas os pesquisadores continuam buscando novas substâncias antimicrobianas, e algumas têm sido
descobertas. Vacinas contra bactérias multirresistentes também são objeto de estudos, mas até o momento nenhuma vacina desse tipo foi aprovada para comercialização. Apesar do esforço de pesquisa visando descobrir novos antibióticos, o número de novas drogas aprovadas para comercialização vem diminuindo ao longo dos anos. Além disso, a cada novo antimicrobiano descoberto, as bactérias adquirem um mecanismo de resistência e proliferam mesmo em sua presença. Assim, cada vez mais, os médicos encontram dificuldades para tratar seus pacientes com a droga mais adequada.
É notório que a disseminação e o potencial para causar pandemias das superbactérias merecem monitoramento constante e efetivo. Mas são necessárias medidas adicionais de controle, em nível nacional e internacional. É importante, para isso, que exista uma colaboração estreita entre países, por meio de redes públicas de vigilância. Surpreende, apesar de todo o avanço da biologia molecular, da biotecnologia e dos estudos de sequenciamento de genomas, que a comunidade científica ainda não tenha redes eficientes para acompanhar a ocorrência de bactérias multirresistentes. Políticas públicas efetivas precisam ser adotadas, o quanto antes, para que hospitais e outros serviços assistenciais continuem a promover a saúde da população, sua função principal, sem gerar mais doenças. Não parece surpresa que o nível de infecções causadas por bactérias resistentes seja proporcional ao consumo de antibióticos. Assim, a rota mais previsível para controlar a questão da resistência é frear o uso abusivo desse tipo de medicamento. 
Cabe aos cientistas desenvolver pesquisas que levem a novas drogas para combater os microorganismos multirresistentes, e compete aos governantes adotar políticas e medidas práticas, implantando o monitoramento constante e o controle da disseminação dessas bactérias modificadas, bem como outras ações de promoção da saúde e prevenção de doenças. Finalmente, a população deve se manter informada, para ter condições de exercer sua cidadania e exigir seus direitos quanto à qualidade dos serviços públicos de saúde.

Artigo publicado na Revista Ciência Hoje nº 287 (adaptado)

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