Transplante Intervivos

Em essência, o grande atrativo da modalidade de transplantes intervivos consiste em evitar a espera na lista de receptores, abrindo perspectivas para pacientes que, de outra forma, evoluiriam para óbito antes de serem transplantados. Na foto é mostrado um transplante de rim.

O fígado é o único órgão do corpo humano capaz de reconstituir até 75% de seus tecidos. O homem já conhece essa impressionante capacidade desde a Antiguidade. A mitologia grega conta que o titã Prometeu foi condenado por Zeus, o deus supremo, a passar a eternidade acorrentado a uma rocha, sofrendo o ataque de um abutre que lhe devorava pedaços do fígado de tempos em tempos. O castigo seria infinito justamente por causa da regeneração do órgão. Apesar de bem criativa, a história soa algo absurda se a gente focalizar os aspectos médicos. Depois de séculos de experiências, os especialistas descobriram que o fígado não consegue se refazer diversas vezes - e, mesmo quando um pedaço do órgão é doado uma única vez, o "renascimento" pode ter alguns problemas. "Quando retiramos parte do fígado, os vasos sanguíneos não se recuperam plenamente e a circulação fica comprometida", diz o cirurgião Tércio Genzini, do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, e especialista no assunto. Outro problema é que o tecido regenerado costuma ser fibroso, mais duro que o original. Isso aumenta as chances de o doador ter cirrose hepática, uma doença que pode fazer com que o órgão pare de funcionar, levando à morte. De qualquer forma, o transplante de fígado é o típico caso em que os benefícios compensam os eventuais problemas. "Quando retiramos parte do órgão de um doador vivo e o transferimos ao receptor, o órgão se multiplica nos dois pacientes. Em ambos, a reconstituição dos tecidos é completa, e o risco de vida para o doador é de apenas 1%", afirma Tércio. Chamado de transplante intervivo, esse tipo de operação está completando 50 anos de história - em 1954, um paciente recebeu um rim novo no pioneiro transplante intervivo em Boston, nos Estados Unidos. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, 24% dos transplantes realizados no primeiro semestre deste ano no Brasil foram desse tipo. Os quatro principais órgãos ou tecidos que podem ser transplantados entre duas pessoas vivas: o fígado, o rim, a medula e o sangue. Além deles, parte do pulmão e do pâncreas podem servir para doações de intervivos, mas essas modalidades de transplante são bem mais raras no país.
Até a década de 70, não existiam perspectivas de tratamento para pacientes com doenças do fígado em fase avançada. Dispunha-se apenas de medidas paliativas, capazes de diminuir seu sofrimento até a fase final da evolução natural da doença. Entretanto, o transplante de fígado abriu perspectivas progressivamente mais animadoras representando, provavelmente, o maior progresso da hepatologia moderna. Centros com maior experiência referem 90% de alta hospitalar e 70% de sobrevida aos 5 anos após o transplante.
Esses ótimos resultados, obtidos numa população sem outra alternativa terapêutica, explicam porque o número de enxertos não é suficiente para atender todos os candidatos a transplante. Em conseqüência, foi necessário, em todos os países que realizam esses procedimentos, organizar listas de espera e adotar critérios para definir a seqüência de atendimento.
No Brasil, em 1997, votou-se uma lei criando a lista única de receptores para cada centro, e determinando um critério cronológico de atendimento, conforme a seqüência de inscrição na lista. Em São Paulo, a lista inclui cerca de 3.000 pacientes com elevada mortalidade durante a espera, visto que o transplante é realizado somente cerca de 4 anos após a inscrição. O problema adquire particular importância no transplante pediátrico, uma vez que, para esse grupo, a disponibilidade de enxertos é ainda menor.
O transplante intervivo em crianças é realizado conforme a seguinte descrição. O lobo esquerdo do fígado do doador adulto (20 a 25% do órgão) é transplantado no receptor infantil. A cirurgia do doador implica em risco muito baixo, uma vez que a ressecção do segmento empregado como enxerto implica em mortalidade de apenas 0,3%, e não exige transfusão de sangue. - O processo de regeneração, característico do fígado, confere um atrativo adicional ao procedimento. Em 30 dias, restitui ao doador sua massa hepática original e faz com que o segmento transplantado cresça até atingir o volume do fígado normal para o tamanho do receptor. Atualmente, essa técnica empregada na maioria dos centros transplantadores pediátricos reduziu a mortalidade na lista de espera referidas na literatura de 50% para 5%.
A partir da década de 90, em países onde é proibida a retirada de órgãos de cadáver, algumas equipes iniciaram o emprego dessa técnica também em adultos. O enxerto usado é o lobo direito (50/60% do órgão), cuja retirada do doador implica num risco maior, com mortalidade estimada ao redor de 2%. Entretanto, como o transplante intervivos evita a lista de espera, sua aceitação tem sido muito grande também em países que usam enxerto de cadáver. Já são referidos mais de 4.000 casos operados em 30 centros nos EUA, 15 na Ásia e 5 na Europa.
Em 1999, em face da alta mortalidade na lista de espera, a Unidade de Fígado iniciou o emprego da modalidade intervivos em adultos. Já foram realizados 148 transplantes intervivos, sendo que os últimos 100 no Hospital Israelita Albert Einstein, com o qual a Unidade de Fígado estabeleceu uma parceria para realização de transplantes, inclusive em pacientes SUS. Não houve mortalidade entre os doadores, cujo tempo de internação médio foi de 3,8 dias.
Em essência, o grande atrativo da modalidade intervivos consiste em evitar a espera na lista de receptores, abrindo perspectivas para pacientes que, de outra forma, evoluiriam para óbito antes de serem transplantados. Todavia, a dependência de uma doação voluntária cria cenários inéditos, do ponto de vista ético, que devem ser amplamente discutidos. É necessário preservar a autonomia do doador, que é submetido à pressões emocionais inevitáveis, uma vez que de sua decisão depende a vida de um ente querido.
De uma maneira geral, deve-se salientar que somente centros com grande experiência em ressecções hepáticas e em transplantes convencionais podem realizar a modalidade intervivos. Apenas nessas circunstâncias é garantida ao doador a retirada do enxerto com um risco eticamente aceitável. Mais especificamente, o procedimento deve ser analisado com vistas aos princípios básicos da ética médica.

Saiba mais sobre transplantes em http://transpantesgeral.blogspot.com/

Comentários

  1. Olá eu tenho uma perguta a fazer.
    Eu tenho um Tio que precisa de transplante de figado, nós fizemos todos os exames de compatibilidade, mas os medicos disse que fazia por causa de uma Lei chamada MELD,que o paciente teria que ter alguma complicação para poder fazer o transplante. Eu queria saber se tendo o doador intervivo ele pode fazer o transplante, e que recurso ele precisa procurar para os médicos fazerem o transplante.
    Espero resposta obrigado pela atenção.

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  2. Meu caro Leonardo,
    MELD ( sigla para Model for End-stage Liver Disease) é um valor numérico, variando de 6 (menor gravidade) a 40 (maior gravidade), usado para quantificar a urgência de transplante de fígado em candidatos com idade igual a 12 ou mais anos. É uma estimativa do risco de óbito se não fizer o transplante nos próximos três meses. Esse critério foi adotado pelo Ministério da Saúde a partir de uma lei aprovada em 2006.
    O valor MELD é calculado por uma fórmula a partir do resultado de três exames laboratoriais de rotina, ou seja: Bilirrubina, que mede a eficiência do fígado excretar bile; Creatinina, uma medida da função renal e RNI - Relação Normalizada Internacional - uma medida da atividade da protombina, que mede a função do fígado com respeito a produção de fatores de coagulação.
    O valor de MELD mínimo aceito para inscrição em lista de espera de transplante é de MELD = 6.
    A avaliação e o preparo para o transplante intervivos são semelhantes aos dos candidatos ao transplante com doador cadáver. O transplante intervivos deve ser considerado para qualquer paciente que se encontre em uma das situações abaixo:
    Expectativa de sobrevida do paciente inferior ao tempo estimado de espera na lista de transplante com doador cadáver.
    Desenvolvimento de hepatocarcinoma (Câncer de Fígado) em paciente cirrótico.
    Morbidade crônica com comprometimento acentuado da qualidade de vida: incapacidade para o trabalho ou para o estudo, múltiplas internações, infecções recorrentes etc.
    Em crianças, deficiência do crescimento ou do desenvolvimento. Espero ter respondido à sua pergunta. Obrigado por prestigiar o Biorritmo.

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  3. Prof. José Antonio.
    obrigado pela resposta, mas eu queria tirar outra duvida agora sobre um das situações citadas pelo senhor:
    Da morbidade crônica com comprometimento acentuado da qualidade de vida: incapacidade para o trabalho ou para o estudo, múltiplas internações, infecções recorrentes etc.
    Meu Tio tem cirrose não sei bem se foi por causa da diabete ou por ja ter pego malária, por causa disso vindo ter varias complicações no ultimo mes, eu queria saber se nesse caso ele se encaixa nesse quadro de morbidade crônica.
    E obrigado de novo pela e pela resposta.

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  4. Primeiramente, precisamos saber qual foi o valor do MELD dele e fazer uma nova avaliação para ver se esse valor aumentou. Ok, Leonardo?

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  5. As doações de órgãos no Brasil bateram recorde em 2010, segundo divulgou o Ministério da Saúde em 17/03/2011. No ano passado, foram registrados 1.896 doadores, 238 a mais que 2009, o que corresponde a um crescimento de 14%. Com estes números, o País alcança a marca histórica de 9,9 doadores por milhão de pessoas (pmp).
    Já o número de transplantes – considerando órgãos sólidos, tecidos (córneas) e células (medula) – fechou 2010 com um total de 21.040 contra 20.253 em 2009. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi responsável por 95% dos transplantes de órgãos sólidos, números que ratificam a posição do Brasil entre os maiores sistemas públicos de transplantes em todo o mundo.
    Segundo o Ministério da Saúde, o investimento no setor mais do que triplicou nos últimos oito anos. Foram investidos quase R$ 1,2 bilhão em 2010.
    Os transplantes de medula óssea também registraram um aumento significativo em 2010. Foram 1.531 procedimentos, um aumento de 74,38% se comparado com 2003, quando foram registrados 972 transplantes.Vamos continuar doando, rapaziada!

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